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sexta-feira, 30 de maio de 2014

João da Gama Filgueiras Lima (Rio de Janeiro, 10 de janeiro de 1932 — Salvador, 21 de maio de 2014)

Poucos arquitetos brasileiros possuem tantas obras saídas de sua prancheta como João Filgueiras Lima, o Lelé (2). Lelé é carioca de nascimento, radicado em Salvador e atuante em todo o país. Participou como protagonista de um dos momentos mais importantes do modernismo brasileiro, o nascimento de Brasília, projetando, construindo e colaborando com outros arquitetos, como Oscar Niemeyer. Ele foi capaz de desenvolver ao longo de sua carreira uma obra única, mesmo no contexto internacional, extremamente ligada a dois aspectos básicos da construção: o clima e a pré-fabricação.
O recém-formado João Filgueiras chegou ao árduo e vazio centro-oeste brasileiro ainda em 1957, ano de início das obras que transformariam aquele deserto na nova capital brasileira. O interesse por uma arquitetura industrializada surge desde este momento, quando Lelé vê-se obrigado a construir um sem número de acampamentos e barracões em madeira. Algo que, sem a devida racionalização, tomaria uma eternidade para ficar pronto. Desde o princípio, no entanto, a idéia de fazer arquitetura, mesmo na provisoriedade, acompanhou o ofício do arquiteto. Mesmo estas construções transitórias em madeira ganharam atenções especiais, revelando-se um primeiro campo de experimentações.
O próprio andamento do processo da construção de Brasília e o avanço nas obras dos edifícios, em contraposição ao tempo exíguo, motivaram nos profissionais ali atuantes um sentimento de praticidade:
“A equipe foi aumentando e, com ela, a necessidade de fazer as coisas andarem mais depressa, e o interesse pelos pré-fabricados. Na própria construção dos prédios principais seria preciso industrializar alguma coisa, aproveitar os elementos repetitivos para ganhar tempo na construção” (3).
Trabalhando junto ao antropólogo e educador Darcy Ribeiro na recém-nascida Universidade de Brasília, Lelé viaja pelo leste europeu para investigar a tecnologia de racionalização do uso do concreto armado, utilizada por países como União Soviética, Tchecoslováquia e Polônia, então dominados pelo regime socialista. Ao contrário dos Estados Unidos, cuja temática mais comum remetia ao uso do aço, o uso do concreto nestes países, em prol de uma política de construção em massa e recuperação da 2ª guerra, aproximava-os da nossa realidade, segundo Lelé, enquanto um país que não dominava a construção metálica.
A pré-fabricação

Centro Administrativo da Bahia, Salvador
Foto Abilio Guerra
Destes primeiros contatos com a pré-fabricação nasceram algumas importantes experiências, como o Hospital de Taguatinga (1968) e as Secretarias do Centro Administrativo da Bahia (1973). Depois do concreto pré-moldado, foi a argamassa armada, ou ferro-cimento (4), um importante objeto de pesquisa de Lelé. Uma das experiências com este material deu-se em Salvador, em 1979, na urbanização e melhoria de algumas áreas de ocupação irregular nas encostas da cidade. Neste caso, o arquiteto utilizou as placas de argamassa armada (nata de cimento e malha de ferro) para desenvolver peças mais leves e flexíveis, que fossem fáceis de transportar e instalar, utilizando mão-de-obra de baixa especialização e permitindo uma obra menos invasiva dentro de um território complexo. Como parte de um programa da prefeitura chamado RENURB, Lelé desenvolveu o projeto de escadarias drenantes, contenções de encosta e canais de drenagem, além de uma série de outros equipamentos. Questões políticas levaram ao fim do programa, em 1982, mas ainda assim, ficou registrada a experiência de uma primeira fábrica para equipamentos comunitários, que Lelé pode testar a seguir em Abadiânia, uma pequena cidade do interior de Goiás.

Hospital Sarah, Brasília
Foto Acervo FAEC

Em 1980 inaugura-se em Brasília o primeiro hospital da Rede Sarah Kubitschek, um conjunto de hospitais públicos, hoje presentes em seis cidades brasileiras, e especializados na reabilitação de pessoas com problemas físico-motores. Conceitualmente, a integração entre arquitetura e medicina é especialmente potencializada nestas obras, tornando-os experiências importantíssimas na criação de espaços alternativos para terapia e cura de doentes.

Escola rural para 50 alunos, esquema de montagem, Abadiânia GO
Desenho João Filgueiras Lima
As obras em Abadiânia tornaram-se protótipos para a experiência que seguiu, a Fábrica de Escolas e Equipamentos Urbanos do Rio de Janeiro. Junto à Darcy Ribeiro, na época vice-governador do Estado e amigo desde a colaboração na Universidade de Brasília, Lelé constrói uma série de edifícios usando peças pré-moldadas e um sistema de montagem altamente racionalizado. Além de rápido, o sistema revela-se útil na manutenção dos empregos da população local, que não perde os postos de trabalho, apesar da industrialização do processo, raciocínio que persiste até hoje. A rapidez e a engenhosidade das construções permitiu ao arquiteto construir mais de duzentas escolas em cerca de dois anos (1984-1986), sempre utilizando a máxima de que a repetição é a base de uma arquitetura industrializada viável.

Passarela pré-fabricada, Salvador
Foto Nelson Kon
Restauradas as condições político-administrativas favoráveis a seu trabalho, Lelé retorna a Salvador para um projeto mais abrangente que o primeiro. A Fábrica de Equipamentos Comunitários (FAEC), que esteve em atividade entre 1985 e 1989, deixou importantes marcas na cidade e atuou em diversos bairros através de elementos como bancos e contenções de jardim, passando pelas passarelas de pedestres até a construção de escolas e creches. Mais de quarenta escolas foram construídas com esta tecnologia. Outra contribuição importante da FAEC foi a sua colaboração com o projeto de revitalização do Centro Histórico, comandado por Lina Bo Bardi e que produziu alguns bons exemplos de intervenção, como a Casa do Benin e a Ladeira da Misericórdia.

Prefeitura de Salvador
Foto Abilio Guerra

A diversidade e complexidade dos elementos a serem construídos, transformaram a FAEC numa fábrica mais completa que as anteriores. Além do núcleo produtor das peças de argamassa armada, houve necessidade de criar um setor de metalurgia, responsável não só pelas fôrmas dos elementos de cimento e ferro, mas também pela estrutura de alguns edifícios e passarelas, tornando este um experimento pioneiro na utilização conjunta de aço e argamassa armada.
Arquitetura hospitalar
Ao final de quatro anos, em 1989, e com a troca de governo no comando do município, o projeto da FAEC foi descartado pelo prefeito que seguiria. O momento, no entanto, coincidiu com a vontade do governo federal de dar prosseguimento à Rede Sarah, criando hospitais satélites em outras cidades. Assim, Lelé e o médico Aloysio Campos da Paz decidem criar em Salvador não só uma unidade da rede, mas também um núcleo capaz de produzir industrialmente todos os elementos componentes deste modelo de edifício hospitalar. Surge assim o Centro de Tecnologia da Rede Sarah (CTRS), uma fantástica fábrica de prédios composta por diversos núcleos de produção: metalurgia pesada (estruturas), argamassa armada, marcenaria (utilizando apenas aglomerados e compensados), injeção de plástico e fibra de vidro, dentre outros. Até mesmo os equipamentos especiais de uso hospitalar, como macas e camas, são produzidos no núcleo de metalurgia leve, com desenho exclusivo de Lelé, no intuito de integrar espaço construído, equipamentos e usuários.
No projeto da unidade soteropolitana, Lelé aproveita o clima estável e quente da cidade para criar enfermarias ávidas pelas trocas com o ambiente externo, conectadas a solários e jardins, colírios aos olhos e magníficas entradas de luz ao edifício. A renovação do ar, preocupação ainda mais importante por conta da higiene exigida, faz-se através de um sistema de exaustão que puxa o ar do exterior e o injeta para o interior, forçando assim a ventilação. Uma verdadeira cidade no subsolo do prédio, na mesma projeção da construção térrea, é responsável por levar o vento a todos os cômodos. Apenas o centro cirúrgico possui climatização artificial, exigência de normas internacionais.

Hospital Sarah, Salvador
Foto Nelson Kon
Ao hospital de Salvador, inaugurado em 1991, seguiram os de São Luís (1993), de Belo Horizonte (1997), Fortaleza (2001) e Rio de Janeiro (2002), além de mais uma unidade em Brasília, recém-inaugurada. Do CTRS, em Salvador, as peças são mandadas para todo o Brasil, seja para a manutenção dos edifícios existentes, seja para a construção de novas unidades, transformando esta fábrica num grande centro de produção e desenvolvimento de tecnologia.
Escolas
A experiência da FAEC em Salvador também será o lastro técnico para um outro projeto, a nível federal, chamado de Centro Integrados de Ensino (CIAC), de 1990. Projetado para ser construído nos quatro cantos do país (total de 5.000 unidades), o CIAC foi o projeto escolar mais intricado de Lelé. Chegou a empregar mais de duzentos tipos de peças diferentes, enquanto as primeiras escolas em Abadiânia não utilizavam mais do que vinte tipos de elementos. Com o impeachment do presidente na época, o projeto perdeu continuidade e apenas poucas unidades foram construídas seguindo fielmente o projeto original. Ainda assim, o modelo se mostra capaz de adaptar-se às mais diversas realidades geográficas, numa solução de rápida construção e grande eficácia.
O papel do arquiteto
A idéia de concretizar uma arquitetura mais humana, preenchida por luz e ventilação natural, além de racionalizada e economicamente viável, tornou a Rede Sarah um símbolo de boa arquitetura (e boa administração) em nosso tropical e carente Brasil. O Centro de Tecnologia fornece hoje peças não só para os hospitais da rede, mas também para outras obras como Escolas, Tribunais de Contas e Tribunais Eleitorais em todo o país, provando seu sucesso. A força das propostas de Lelé, capazes de romper a descontinuidade das políticas públicas, e penetrarem em grande parte de nosso território, mostra que a arquitetura pode, sim, ter sua parte num mundo e num Brasil melhor.
Mas é preciso quebrar a cabeça.
notas
1
Artigo publicado originalmente no número especial, dedicada ao Brasil, da revista suíça Tracés. EKERMAN, Sergio Kopinski. “Le oeuvre multiforme de Lelé“. Lausanne, Tracés, n° 15/16, ano 131, 17 agosto 2005, p. 26-28. O artigo de Renato Anelli, presente no volume, já foi publicado em Vitruvius. As partes deste número são os seguintes:
2
João da Gama Filgueiras Lima, Lelé, nascido em 10 de janeiro de 1932, no Rio de Janeiro é formado pela Escola de Belas Artes, no Rio de Janeiro em 1955. Iniciou sua carreira durante a construção de Brasília, onde teve participação ativa, colaborando diretamente com Oscar Niemeyer. Participou da implantação da Universidade de Brasília, onde lecionou e coordenou a Pós-Graduação. Notabilizou-se pelo trabalho com a arquitetura pré-fabricada, realizando diversas obras em diversas capitais como Brasília, Rio de Janeiro e Salvador, transformando-se num dos mais importantes arquitetos do Brasil. Desenvolveu o projeto da Rede Sarah de Hospitais em todo o país. Recebeu diversos prêmios em sua carreira, dentre eles o Grande Prêmio da Primeira Bienal de Arquitetura e Engenharia de Madrid pelo projeto da unidade do Sarah em Salvador. Recentemente, representou o Brasil na Bienal Internacional de Veneza, em 2000.
3
LIMA, João Filgueiras. O que é ser arquiteto. Em depoimento a Cynara Menezes. Rio de Janeiro, Record, 2004, p. 46.
4
“Os primeiros relatos sobre este material remontam ao final dos anos 1840, quando um engenheiro francês chamado Lambot começa a fazer pesquisas com a argamassa para construir embarcações. Desde que o concreto surgiu, a argamassa veio paralelamente, porque usa os mesmos ingredientes. Só que em vez de usar uma armação específica como o concreto, usa uma armação difusa, que torna o material mais homogêneo”. In LIMA, João Filgueiras. Op. cit., p. 55.
sobre o autor
Sergio Kopinski Ekerman, arquiteto e urbanista pela Universidade Federal da Bahia. Trabalha com o Arq. Paulo Ormindo de Azevedo e ensina na Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia

MARX CONTINUA FAZENDO FALTA

Considerações sobre o Capital de Piketty

Há muitas coisas valiosas no conjunto de dados de Piketty. 

Mas sua explicação de por que surgem as desigualdades 

e as tendências oligárquicas tem erros.

David Harvey (*)


Arquivo


Thomas Piketty escreveu um livro chamado Capital e provocou bastante polêmica. Defende uma taxação progressiva e um imposto global sobre a riqueza como única maneira de frear a tendência à criação de uma forma “patrimonial” de capitalismo, marcada pelo que chama de desigualdades “apavoradoras” de riqueza e renda. Também documenta em detalhes, de modo intenso e difícil de rebater, de que maneira a desigualdade social, tanto da riqueza como da renda, evoluíram nos últimos dois séculos, com especial relevância no caso da riqueza. O livro liquida a opinião amplamente difundida de que o capitalismo de livre mercado difunde a riqueza e é o grande baluarte para a defesa de opiniões de liberdade. Piketty nos mostra que o capitalismo de livre mercado, na ausência de intervenções redistributivas e de grande envergadura por parte do Estado, produz oligarquias antidemocráticas. Essa demonstração alimentou a indignação liberal e deixou o Wall Street Journal perplexo.

O livro tem frequentemente se apresentado como substituto da obra homônima de Karl Marx no século XIX. Piketty nega que esta tenha sido sua intenção – o que está correto, considerando que seu livro não é, em absoluto, sobre o capital. Ele não nos explica por que se produziu a crise de 2008 e por que tanta gente está demorando tanto para sair do duplo problema do desemprego prolongado e de milhões de casas perdidas por execuções hipotecárias. Não nos ajuda a compreender por que o crescimento é atualmente tão frouxo nos EUA em comparação à China e por que a Europa está bloqueada em uma política de austeridade e em uma economia de estancamento. O que Piketty mostra estatisticamente (e deveríamos agradecer a ele e a seus colegas por isso) é que o capital tendeu a produzir níveis cada vez maiores de desigualdade ao longo de sua história. Para muitos de nós, isso não é nenhuma novidade. Isso era exatamente a conclusão teórica de Marx no primeiro volume de sua versão de O Capital. Piketty não chega a advertir para isso, o que não é surpreendente, dado que ele declarou – diante das acusações da imprensa direitista de que é um marxista disfarçado – que não leu O Capital de Marx.

Piketty recorre a uma grande quantidade de dados para apoiar sua argumentação. Seu relato das diferenças entre renda e riqueza é convincente e útil. E proporciona uma defesa cuidadosa dos impostos sobre a herança, a taxação progressiva e um imposto global sobre a riqueza como antídotos possíveis (embora é quase certo que sejam inviáveis politicamente) para uma maior concentração de riqueza e poder.

Mas por que se produziu essa tendência a uma maior desigualdade ao longo do tempo? Partindo de seus dados (temperados com certas alusões nítidas a Jane Austen e a Balzac) ele cria uma lei matemática para explicar o seguinte: a acumulação cada vez mais crescente de riqueza por parte do famoso 1% (termo popularizado graças, é claro, ao movimento Occupy) se deve ao simples fato de que a taxa de retorno sobre o capital (r) sempre supera a taxa de crescimento da renda (g). Esta é e sempre foi, segundo Piketty, “a contradição central” do capital.

Mas uma regularidade estatística dessa ordem apenas constitui uma explicação adequada – não chega a ser uma lei. Dessa forma, quais forças produzem e sustentam essa contradição? Piketty não diz. A lei é a lei e isso é o que existe. Evidentemente, Marx havia atribuído a existência dessa lei ao desequilíbrio de poder entre capital e trabalho. E a explicação ainda se sustenta. A queda constante da parte do trabalho na renda nacional desde os anos 70 é derivada do poder econômico e político decadente do trabalho à medida que o capital mobilizava tecnologias, desemprego, deslocamento e medidas políticas antissindicais (como as de Margaret Thatcher e Ronald Reagan) a fim de minar qualquer oposição.

Conforme confessou Alan Budd, assessor econômico de Margaret Thatcher, em um momento de descuido, as políticas anti-inflacionárias dos anos 80 eram “uma forma estupenda de elevar o desemprego, e elevar o desemprego era uma forma extremamente desejável de reduzir a fortaleza das classes trabalhadoras... o que se conseguiu com isso foi, em termos marxistas, uma crise do capitalismo que voltou a criar um exército de reserva e que possibilitou aos capitalistas conseguir elevados benefícios desde então”. A disparidade de remunerações entre trabalhadores médios e diretores estava aproximadamente em 30 para 1 em 1970. Hoje está em torno de 300 para 1 e, no caso do Mc Donald's, em torno de 1200 para 1.

Mas, no segundo volume de O Capital de Marx (que Piketty também não leu, conforme declara alegremente), este apontava que a inclinação do capital para pressionar os salários para baixo restringiria em algum momento a capacidade do mercado de absorver o produto do capital. Henry Ford identificou esse dilema há muito tempo, quando decretou para seus trabalhadores a jornada de 8 horas a 5 dólares com a finalidade, segundo ele dizia, de impulsionar o consumo. Muitos pensavam que a falta de demanda efetiva formou a base da Grande Depressão da década de 1930. Nisso se inspiraram as políticas keynesianas expansivas após a II Guerra Mundial e teve como resultado certas reduções nas desigualdades de renda (embora nem tanto de riqueza) em meio a um forte crescimento impulsionado pela demanda. Mas essa solução estava no relativo empoderamento do trabalho e na construção do “estado social” (a denominação é de Piketty) financiada por uma taxação progressiva. “Considerando em seu conjunto”, ele escreve, “no período 1932-1980, quase meio século, o máximo imposto federal sobre a renda ascendeu a uma média de 81%”. E isso não prejudicou de forma alguma o crescimento (outra evidência de Piketty que rebate as crenças da direita).

Ali pelo final dos anos 60, ficou claro para muitos capitalistas que lhes fazia falta atuar de alguma forma contra o excessivo poder do trabalho. Daí a expulsão de Keynes do plantel dos economistas respeitáveis, o giro ao pensamento da economia de oferta de Milton Friedman, a cruzada para estabilizar, se não reduzir, a taxação para desconstruir o Estado social e disciplinar as forças do trabalho. Depois de 1980, caíram os tipos impositivos máximos e os lucros do capital – importante fonte de renda para os super-ricos – passaram a ser tributados com uma taxa muito inferior nos EUA, impulsionando enormemente o fluxo de riqueza em direção ao 1% mais rico. Mas o impacto sobre o crescimento, mostra Piketty, foi desprezível. De modo que o “efeito cascata” (“trickle down”) dos benefícios dos ricos aos demais (outra das crenças diletas da direita) não funciona. Nada disso era ditado por alguma lei matemática. Tinha tudo a ver com a política.

Mas logo se fechou o círculo e a pergunta mais relevante se tornou esta: onde está a demanda? Piketty ignora sistematicamente essa pergunta. Os anos 90 maquiaram a resposta por meio de uma imensa expansão do crédito, incluindo a ampliação do financiamento de hipotecas nos mercados subprime. Mas o resultado foi uma bolha de ativos destinada a estourar, como ocorreu em 2007-8, provocando a derrocada do Lehman Brothers e, com ele, o sistema de crédito. No entanto, as taxas de benefício e a concentração ainda maior da riqueza privada se recuperou muito rapidamente depois de 2009, ao passo que no restante, em todos e em cada um, isso se deu mal. As taxas de benefício das empresas hoje são altas, como sempre foram nos Estados Unidos. As empresas estão sentadas sobre montanhas de dinheiro e se negam a gastá-lo porque as condições do mercado não são sólidas.

A formulação de Piketty da lei matemática esconde mais do que revela sobre a política de classe que estão em jogo. Tal como observou Warren Buffett, “desde logo, há uma guerra de classe, e é a minha classe, a dos ricos, a que a está lutando, e nós estamos ganhando”. Uma medida chave de sua vitória são as recentes disparidades de riqueza e renda do 1% mais rico em relação a todos os demais.

No entanto, existe uma dificuldade central na argumentação de Piketty. Esta se apoia em uma definição equivocada de capital. O capital é um processo, e não uma coisa. É um processo de circulação em que o dinheiro é utilizado para fazer mais dinheiro frequentemente, mas não exclusivamente, mediante a exploração da força de trabalho. Piketty define o capital como o estoque de todos os ativos em mãos de particulares, empresas e governos com os quais se pode comercializar no mercado, independentemente do fato de que esses ativos sejam utilizados ou não. Nisso, entra a terra, imóveis e os direitos de propriedade intelectual, bem como minha coleção de arte e de joias. Como determinar o valor de todas essas coisas é um problema técnico difícil, que não tem nenhuma solução acordada. Com a finalidade de calcular uma taxa significativa de retorno (r), precisamos avaliar o capital inicial de alguma forma. Desgraçadamente, não há uma forma de avaliá-lo independentemente do valor dos bens e serviços utilizados ou que podem ser vendidos no mercado. O conjunto do pensamento econômico neoclássico (que é a base do pensamento de Piketty) se baseia em uma tautologia. A taxa de retorno sobre o capital depende de maneira crucial da taxa de crescimento porque o capital é mensurado por meio do que produz e não pelo que entrava em sua produção.


Seu valor se vê enormemente influenciado pelas condições especulativas e pode ser gravemente deformada pela famosa “exuberância irracional” que Greenspan identificou como característica do mercado de ações e imobiliário. Se subtrairmos habitação e imóveis – para não falar das coleções artísticas das pessoas com hedge funds – à definição do capital (e a lógica em prol da sua inclusão é bastante débil), então cai por terra a explicação de Piketty sobre as crescentes disparidades de riqueza e renda, embora sua descrição sobre o estado das desigualdades passadas e presentes se mantenha.

O dinheiro, a terra, os imóveis, as fábricas e o equipamento que não são utilizados de modo produtivo não são capital. Se a taxa de retorno sobre o capital que se utiliza é alta, isso se deve ao fato de que uma parte do capital é retirado de circulação e se coloca de fato em greve.

Restringir a provisão de capital a novos investimentos (fenômeno do qual hoje somos testemunhas) garante uma elevada taxa de retorno: é o que faz todo capital quando lhe é dada a oportunidade. Isso é o que aponta a tendência da taxa de retorno do capital (não importa como se defina ou calcule) a exceder a taxa de crescimento da renda. É assim que o capital assegura sua própria reprodução, sem se importar quão incômodas são as consequências para todos os demais. E assim é como a classe capitalista vive.

Há muitas coisas que são valiosas no conjunto de dados de Piketty. Mas sua explicação de por que surgem as desigualdades e as tendências oligárquicas tem erros. Suas propostas quanto aos remédios às desigualdades são ingênuas, se não utópicas. E não produziram desde já um modelo de funcionamento para o capital do século XXI. Para isso, ainda nos faz falta Marx ou um equivalente contemporâneo.

* David Harvey é professor de Antropologia e Geografia no Graduate Center da City University of New York (CUNY), diretor do Center for Place, Culture and Politics, e autor de inúmeros livros – sendo o mais recente Seventeen Contradictions and the End of Capitalism (Dezessete contradições e o fim do capitalismo, Profile Press, Londres, e Oxford University Press, Nueva York). Ensinou O Capital de Karl Marx durante mais de 40 anos.

Tradução: Daniella Cambaúva

quarta-feira, 14 de maio de 2014

Vai ter Copa: resposta à grande aliança

O patético manifesto deixado pelos autores do atentado contra a embaixada do Brasil em Berlim é um misto de desinformação, má fé e de devaneio político.

Marco Aurélio Garcia
Arquivo

Desde Berlim, onde reside há alguns anos, Flávio Aguiar nos escreve, em Carta Maior, sobre o recente apedrejamento da Embaixada brasileira na Alemanha em protesto contra a realização da Copa do Mundo no Brasil.

O patético manifesto deixado pelos autores do atentado – misto de desinformação, má fé e de devaneio político – se insere, como explica Aguiar, em uma campanha cuidadosamente articulada pela mídia conservadora e pelo establishment financeiro europeus contra o Brasil e o Governo brasileiro. Baluartes importantes dessa mobilização têm sido o FINANCIAL TIMES e a ECONOMIST.
 
Um exame mais detalhado da situação permitiria incorporar outros atores, dentre eles o SPIEGEL, na Alemanha, que há bem pouco vituperou contra o Mundial-2014 no Brasil. Até o conservador EL MERCURIO, do Chile, se somou à campanha.

Não se trata, assim, de um movimento puramente europeu. Uma zapeada na maioria das televisões globais ou a leitura de jornais e revistas internacionais revelam a extensão e profundidade que esta campanha atingiu, reunindo paradoxalmente meios conservadores da City londrina, e adjacências, a grupos supostamente revolucionários que, na impossibilidade de reverter a tragédia econômica e social em que está mergulhada a Europa, decidiram pontificar lições além-mar.

Deve incomodar muito, em um continente assolado pelo desemprego, que a Copa se realize em um país que apresenta hoje os mais altos índices de emprego no mundo e cujo salário mínimo aumentou 70% acima da inflação na última década.
 
Da mesma forma, é constrangedor ver manifestações em uma Europa combalida pelo desmonte do Estado de Bem-Estar contra um país que tem dado passos importantes na construção de uma sociedade mais próspera, igualitária e democrática.

O Brasil dispensa essas lições, sobretudo quando provenientes de uma aliança tão “heterogênea” como esta a que estamos assistindo.

Conhecemos bem os ardis da História. Em fins dos anos 20 e início da década de 30, do século passado, ocorreu um trágico desencontro das esquerdas alemãs. Comunistas e Socialdemocratas se acusavam mutuamente, enquanto a extrema direita se apropriava de grande parte das classes trabalhadoras alemãs, mergulhadas que estavam no desalento e na perplexidade política. Quem pagou esta conta não foram somente os alemães, mas a humanidade inteira.

Não se pode negar que ouvimos a voz das ruas no Brasil. Não somente durante as manifestações de 2013, mas nos quase 12 anos em que Lula e Dilma Rousseff governaram e governam o país.

No Brasil, nesse período, iniciamos a construção de uma sociedade mais igualitária e democrática. Caminho difícil de ser percorrido, tendo em vista a pesada herança interna de décadas que nos foi legada, o difícil contexto internacional dos últimos anos e também – temos de reconhecer – nossos erros e deficiências.

Sabemos que a transformação que o povo e o Governo brasileiros estão realizando não coincide com o roteiro previsto em muitos textos “clássicos”. Mas sabemos também que a mudança tem sido suficientemente importante para deixar profundamente preocupadas as classes dominantes locais e, sobretudo, internacionais.

Vamos continuar neste caminho.

E vai ter COPA.

(Do CartaMaior)

domingo, 11 de maio de 2014

Artigo de Lula: O mundo se encontra no Brasil

May 08, 2014

Foto: Ricardo Stuckert/Instituto Lula
Por Luiz Inácio Lula da Silva
Quando era presidente da República, trabalhei intensamente para que a Copa do Mundo de 2014 fosse realizada no Brasil. E não o fiz por razões econômicas ou políticas, mas pelo que o futebol representa para todos os povos e, particularmente, para o povo brasileiro. A nossa população apoiou com entusiasmo a ideia, rejeitando o preconceito elitista dos que dizem que um evento desse porte “é coisa de país rico”, e se esquecem de que o Uruguai, o Chile, o México, a Argentina, a África do Sul e o próprio Brasil já o sediaram com sucesso.
O futebol é o único esporte realmente universal, praticado e amado em todos os países, por pessoas das mais diferentes classes, etnias, culturas e religiões.
E talvez nenhum outro país do mundo tenha a sua identidade tão ligada ao futebol quanto o Brasil. Ele não foi  apenas assimilado, mas, de alguma forma, também transfigurado pela ginga  e pela mistura de raças brasileiras. Nos pés de descendentes de africanos ganhou um novo ritmo, beleza e arte. Durante muitos anos, foi um dos poucos espaços, junto com a música popular, em que os negros podiam mostrar o seu talento, enfrentando com alegria libertária a discriminação racial. Não é por outra razão que o futebol e a música são muitas vezes a primeira coisa que um estrangeiro lembra quando se fala do Brasil.
Para nós, o futebol é mais do que um esporte, é uma paixão nacional, que vai muito além dos clubes profissionais. Milhões de pessoas o praticam, amadoristicamente, no seu dia a dia, nos quintais, nos terrenos baldios, nas praias, nos parques, nas praças públicas, nas ruas da periferia, nos pátios das escolas e das fábricas. Onde houver uma área disponível, por menor que seja, ali se improvisa uma partida de futebol. Se não tem bola de couro, joga-se com bola de plástico, de borracha ou de pano. Em último caso, até com uma latinha vazia.
Em 1958, na Suécia, uma seleção espetacular encantou o planeta, ganhando nosso primeiro título mundial. Eu tinha doze anos, e juntei um grupo de amigos para ouvirmos a partida final num campinho de várzea com um pequeno rádio de pilha. Nossa fantasia compensava com sobras a falta de imagens, viajando na voz do locutor. Ela nos transportava como num tapete mágico para dentro do Estádio Rasunda de Estocolmo. E ali não éramos apenas espectadores, mas jogávamos… Eu sonhava em ser jogador de futebol, não presidente do Brasil.
O grande escritor Nelson Rodrigues, nosso maior dramaturgos, disse que com aquela vitória conquistada por gênios da bola como Pelé, Garrincha e Didi o Brasil tinha superado o seu “complexo de vira-lata”. E que complexo  seria esse? “É a inferioridade – dizia ele – em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do mundo”. Atrevendo-se a ser campeão, era como se o Brasil estivesse dizendo a si mesmo e aos demais países: “Sim, nós podemos ser tão bons quanto qualquer um”.
Naquela época, o Brasil estava começando a se industrializar, tinha criado a sua própria empresa de petróleo e o seu banco de desenvolvimento, as classes populares reivindicavam democraticamente melhores condições de vida e maior participação nas decisões do país – mas  os  setores privilegiados diziam que isso era um erro gravíssimo, fruto de “politicagem” ou “esquerdismo”, já que comprovadamente não existia petróleo em nosso território e não tínhamos necessidade alguma de inclusão social e muito menos de uma indústria nacional…
Alguns chegavam a afirmar que uma nação como a nossa, atrasada, mestiça – de povo “ignorante e preguiçoso”, segundo um estereótipo muito difundido dentro e fora do país – devia conformar-se com o seu destino subalterno, sem ficar alimentando sonhos irrealizáveis de progresso econômico e justiça social.
Na verdade, não é fácil superar o “complexo de vira-lata”. Fomos colônia por mais de 320 anos, e a pior herança dessa condição é a persistência da mentalidade colonizada de servidão voluntária…
Entre 1958 e 2010, ganhamos cinco campeonatos mundiais de futebol. Somos até agora a nação com maior número de títulos conquistados. Mas o melhor de tudo é que o saudável atrevimento do povo brasileiro não se limitou ao âmbito esportivo.
O Brasil que o mundo vai conhecer a partir de 12 de junho é um país muito diferente daquele que sediou a Copa de 1950, quando perdeu na final para o Uruguai. Ainda tem problemas e desafios,  alguns bastante complexos, como qualquer outra nação, mas já não é mais o eterno “país do futuro”. O país de hoje é mais próspero e equitativo do que era há seis décadas. Entre outras razões porque a nossa gente – principalmente a que vive no “andar de baixo” da sociedade” – libertou-se dos  preconceitos elitistas e colonialistas e passou a acreditar em si mesma e nas possibilidades do país. Descobriu que, além de vencer competições mundiais de futebol, podia também vencer a fome, a pobreza, o atraso produtivo e a desigualdade social. Que a mestiçagem, longe de ser um obstáculo – pior: um estigma –  é uma das maiores riquezas do nosso país.
É esse novo Brasil que vai sediar a Copa. Um país que já é a sétima economia do planeta e que, em pouco mais de dez anos, tirou 36 milhões  de pessoas da miséria e levou 42 milhões para a classe média. É o país com as taxas de desemprego mais baixas da sua história. Que, segundo a OCDE, entre todos os países do mundo, foi um dos que mais aumentou nos últimos anos o investimento em educação. Um país que se orgulha de todas essas conquistas, mas não esconde os seus problemas, e se empenha em resolvê-los.
Recentemente, a Copa do Mundo tornou-se objeto de feroz luta política e eleitoral no Brasil. Á medida que se aproxima a eleição presidencial de outubro, os ataques ao evento tornam-se cada vez mais sectários e irracionais. As críticas, naturalmente, são parte da vida democrática. Quando feitas com honestidade, ajudam a aperfeiçoar a preparação do país para esse grande acontecimento esportivo. Mas determinados setores parecem desejar o fracasso da Copa, como se disso dependessem as suas chances eleitorais. E não hesitam em disseminar informações falsas que às vezes são reproduzidas pela própria imprensa internacional sem o cuidado de checar a sua veracidade. O país, no entanto, está preparado, dentro e fora de campo, para realizar uma boa Copa do Mundo – e vai fazê-lo.
A nossa seleção foi a única a participar de as 19 edições da Copa do Mundo e sempre fomos muito bem recebidos nos outros países. Chegou a hora de retribuir com hospitalidade e alegria tipicamente brasileiras. A procura de bilhetes tem sido forte, com pedidos de mais de 200 países. Esta é uma oportunidade extraordinária para milhares de visitantes conhecerem mais profundamente o que o Brasil tem de melhor: o seu povo.
A importância da Copa do Mundo não é apenas econômica ou comercial. Na verdade, o mundo vai se encontrar no Brasil a convite do futebol. Vai demonstrar novamente que a ideia de uma comunidade internacional pacifica e fraterna não é uma utopia.
(Luiz Inácio Lula da Silva é ex-presidente do Brasil, que agora trabalha em iniciativas globais com Instituto Lula e pode ser seguido em facebook.com/lula).